Foi o ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger, quem forjou o termo “guerra civil molecular”, cujo propósito consiste em apontar o atual estado de violência desenfreada e sem controle que se espraiou pelo mundo afora. Tal estado de violência manifesta por todas as partes, em qualquer lugar e sem nenhum pretexto. O estado de brutalidade em que chafurdamos pode ser desencadeado por bandos, gangues ou simplesmente por um indivíduo qualquer. Ele é resultante de uma ação desmedida ou de uma intenção previamente pensada. Como diz o autor: “o homem é o único primata que planeja o extermínio dentro de sua própria espécie e o executa entusiasticamente e em grandes dimensões”.
O motivo para tal violência é o que menos importa, muitas vezes é resultante de coisas banais ou puro capricho para ferir ou matar. Seja como for, atualmente assistimos bestificados ao alastramento dos rastros de destruição, medo, morte e terror. O dia-a-dia das cidades, grandes e pequenas, vão se engendrando a esta nova forma de desencadear a guerra. Trata-se de uma guerra sem limites e sem exércitos. Diante deste quadro os Estados pouco ou nada têm conseguido fazer. Sobretudo no Brasil, um país rico em preconceito, sustentado pela hipocrisia, pelo falso-moralismo e pela corrupção desenfreada. As ações das autoridades dão o tom da truculência, da intolerância e da impunidade que impera a pretexto do desenvolvimento econômico. Nossas instituições estão cada vez mais carcomidas e têm contribuído enormemente para a expansão das mais variadas formas de crime: “não mudamos de país/ Mas mudamos de Estado/ Estado de violência/ Estado de pobreza/ Estado de hipocrisia/ E de demagogia”.
Aos poucos a brutalidade do cotidiano foi nos encurralando. O medo e a insegurança se caracterizam como a nova ordem nesta razão sangrenta. Basta um passo em falso neste campo minado para tudo voar pelos ares. O que antes parecia notícias distantes, amplamente divulgadas pelos meios de comunicação, privilégio dos grandes centros urbanos, torna-se cada vez mais presentes em nossas vidas. Em cada esquina, entre amigos ou conhecidos, testemunhamos os horrores narrados por alguém, até o dia em que somos apanhados de supetão, atingidos em cheio. Não faz tanto tempo fiquei assustado com a notícia de que um segurança da Universidade (UFT-Tocantinópolis) fora brutalmente espancado a pauladas dentro do campus em pleno horário de trabalho. Os assassinos foram julgados e inocentados. Espancamento este que resultou na morte do mesmo. Pouco tempo depois, a cidade foi despertada pela notícia de que uma jovem mãe de família fora estrangulada no centro da cidade e em plena luz do dia.
Diante deste quadro de horror, eis que chega o dia em que você é obrigado a olhar nos olhos da morte. No último dia 05 de janeiro me deparei diante da mais brutal e desprezível situação. Encontrava-me no interior do Maranhão, quando por volta das 06:00hs da manhã, fui acordado com estrondosas batidas na porta do quarto do hotel em que estava hospedado. Ao abrir a porta e deparar-me com dois amigos, tive a certeza que aquele barulho era do mundo despencando sobre minha cabeça. Fui golpeado na alma com a notícia que meu companheiro de 20 anos, Cleides Antonio Amorim, antropólogo, professor da Universidade Federal do Tocantins, fora assassinado com uma facada. Motivo? Intolerantes ofensas, desrespeito! Pura ignorância!
Por volta das 20:00hs do dia 04, ele havia saído de casa para buscar um amigo numa vizinha cidade (Aquiarnópolis). No caminho de volta, resolveram beber umas cervejas em um bar da cidade de Tocantinópolis. Saíram deste para outro, onde Cleides pretendia comprar cigarros e, lá chegando, resolveram tomar mais uma cerveja antes de ir para casa. Eis que chega o emissário da morte. Sentados em mesas opostas, Cleides mais dois amigos, conversavam alegremente, como era de costume. Foi quando ao soltar uma alegre e deliciosa gargalhada, marca registrada da sua alegria contagiante foi insultado pelo criminoso: “nesta mesa só tem veados”. Arrogante e homofóbico, não se dando por satisfeito, o marginal deu prosseguimento aos insultos e ofensas: “vocês gostam mesmo é de dá o C...” Diante de tamanho desrespeito, Cleides e amigos partiram para cima do agressor e o imobilizaram. Após ser dominado, o covarde pediu pelo amor de Deus para que eles o soltassem, pois iria apenas pegar sua moto e ir embora. A menos de um metro do assassino, todos esperavam que o mesmo seguisse seu caminho. Ao ser solto, o covarde teve a opção de tomar seu rumo. Intencionalmente ele retirou uma faca que se encontrava debaixo do banco da moto e friamente desferiu o golpe fatal que ceifou a vida de Cleides. O golpe desferido demonstra a intenção de quem sabia o que estava fazendo, ou seja, matando alguém. A faca penetrou no lado esquerdo, atingindo o coração.
Na avalanche de absurdo em que estamos atolados, o medo, a insegurança vão se impondo como a ordem do dia. Não importa se é dia ou noite, se o lugar é público ou privado, sempre haverá alguém mal intencionado que se acha no direito de constranger, insultar, desrespeitar, fazer o que bem lhe aprouver e resolver tudo tirando a vida de alguém. Trata-se do crime servindo como forma de imposição de sua vontade. Para o criminoso, a arma serve como instrumento necessário nas relações sociais. O covarde que assassinou Cleides compartilha dessa convicção. Ou seja, a de ser infrator, criar situações de conflito e resolvê-las com a eliminação do seu oponente. No caos vigente em que chafurda a segurança pública do país, este é mais um dos milhares de casos atrozes, em que um facínora qualquer se torna um agente da guerra, um emissário da morte. Este texto pode parecer fruto da indignação de alguém que foi duplamente ferido por um só golpe fatal. No entanto, esta é uma pergunta que a justiça do Estado do Tocantins terá que responder imediatamente: até quando este assassino ficará solto pelas ruas colocando em risco a vida de outras pessoas? Quem será próxima vítima da sua arrogância e intolerância? O assassino, que já cumpria pena alternativa por ameaçar alguém de morte, desta vez consolidou seu desejo de matar. Portanto, cabe ao Estado, à Justiça e aos homens que fazem a lei responder estas perguntas, caso contrário, corre-se o risco da sociedade imaginar que seremos impulsionados a acreditar no mito primevo de Hobbes da luta de todos contra todos.
Helen Lopes de Sousa