(Gênese do Universo imagético da Agenda Poética Marginal)
Eu me lembro...
Já se passaram cinco anos desde o nosso último encontro, quando era então lançado o segundo número da Agenda Poética Marginal. De lá pra cá algumas coisas mudaram, como a decisão de migrar para as artes plásticas, com a criação de uma oficina paralela de artes visuais que optei em chamar de “Antro da Imagem”.
Também surgiu a necessidade de mudar o nome da logomarca que, de Carbono 14 passa agora a se chamar “Oficina Carbono” ampliando assim o leque de opções de trabalhos visuais que receberão a minha assinatura (Antro da Imagem). Nesse momento a Agenda Poética Marginal – Rádio Ressurreição surge como um divisor de águas. Somente agora vão emergir novos trabalhos, agregando outras propostas visuais, outros valores plásticos e explorando a plasticidade de objetos ímpares, como lamparinas e artefatos de cerâmica.
Juntando tudo isso, surge uma loja híbrida de opções diversas, juntando serigrafia, quadrinhos e artes plásticas, um desejo antigo que era agrupar o que eu já desenvolvia (camisetas, agendas e cartazes) com novos produtos atrelados a uma nova pesquisa visual fundamentada em objetos de arte e decoração, tendo como base a originalidade dos desenhos aplicados em tais objetos. Junto a essa idéia, é provável que também se instale uma gibiteca, divulgando o mundo dos quadrinhos, a princípio com uma tímida intenção, devido ao acervo ainda ser mínimo.
O desejo de se fazer uma incursão na área das artes plásticas é antigo, pois apesar de nunca ter exposto meus desenhos fora do campo serigráfico (camisetas e cartazes) foi se formando um arquivo de peças e desenhos, construindo então um acervo iconográfico que, com a constante criação e acumulação de figuras, me obriga a criar uma oficina paralela que, por brincar com a variedade e a amplidão de desenhos, chamo de “Antro da Imagem”.
Em meio a esse ambiente de mudanças, percebo a existência das “Janelas Empoeiradas”, sobre quem falaremos um pouco mais adiante. Foi abrindo tais janelas que tive acesso aos insight´s, às lembranças guardadas pela memória e adormecidas pelo tempo, como em processo letárgico, de torpor, de hibernação. É desse ambiente que surge o nome “Rádio Ressurreição” que também abordaremos mais adiante explicando o porquê.
Junto à Rádio Ressurreição surgem outras lembranças, outros nomes, como uma instalação que se chamará “Subterrânea” e que somente ganhará vida material futuramente (?) na minha primeira exposição individual. “Subterrânea” é uma peça de beleza exótica, atípica e de forte identidade, com ar introspectivo.
É também neste momento que surge o Helemento Qarbono, um profeta imaginário, pedindo a dádiva da fala, da expressão oral, do grito. E como fala! E como grita essa criatura!! (gritos internos são os mais audíveis).
A inserção dessa figura só é permitida agora, pois há tempos já se queria apresentá-lo, só que ele ainda não tinha muito o que dizer e, portanto, pra não contrariar o provérbio oriental que valoriza a importância das palavras, optamos pelo seu silêncio. Somente agora essa criatura recebe o dom da fala e vem nos dar o ar da graça!
Pois é! Jacques Cousteau, mas chegou! E sem que se perceba a gente se encontra pra uma outra folia! Brincando, brincando, já estamos na terceira edição da Agenda Poética Marginal e, sabendo que nenhum caminho é linear, como diria o Helemento Qarbono, sabe lá quando será a quarta edição!! Mas vamos deixar o tempo com os relógios, o futuro com os profetas e o hoje com Horácio (Carpe Diem ! – Aproveita o dia!)
Voltando à agenda, sou suspeito para tecer comentários a respeito da criação, da gênese desse trabalho, pois convivo integralmente com ela, em toda a extensão da palavra, da sensação à materialização, do desejo etéreo ao objeto concreto.
Como havia dito, eu sou suspeito, porém acho que sou a pessoa mais indicada pra traçar em miúdos algumas coisas “Intro” e específicas que ajudarão a compreender este ambiente que formou e construiu a sua personalidade.
Pra começar, são três as palavras – chave que servem de suporte para se conhecer, compreender a agenda. As palavras são: Atemporal, Singular e Cosmopolita.
Optei pelo conceito destas três palavras pra tentar definir e sintetizar a agenda a partir deste princípio. Então, como diria o esquartejador, vamos por partes:
Atemporal, por não respeitar o tempo, resgatando de ontem a palavra que se mantém viva e significativa hoje, como as frases de Gandhi, Baudelaire e Luther King, tornando os seus pensamentos blindados contra a voracidade do tempo.
O resgate da ideologia marginal se plasma com o ideário da agenda, que tem na brevidade da palavra a sua espinha dorsal e o seu “modus operandi” incorporando elementos que se fundem com a filosofia marginal, usando frases curtas e breves, como os hai-kais japoneses. Tal postura mantém a palavra sempre jovem, desrespeitando o padrão estabelecido, a métrica, com textos que contrariam o tempo, negando-se a envelhecer, como o estigma da literatura ou a síndrome de Peter Pan. Isso é ser atemporal.
Singular pela unicidade de sua história, de seu grito silencioso, pela persistência em manter-se viva diante a tantos obstáculos, onde tudo desaguava em um provável silenciamento. A sua trajetória não-linear, sua postura avessa, sua verve, sua acidez; sua rebeldia cirúrgica contra a alienação e sua eterna desobediência a tudo que é disciplinador e normativo. Essa é a sua alma marginal, fazendo disso a sua condição singular. Tal postura lhe outorga esse conceito, forjando então a sua personalidade única.
Cosmopolita pela sua visão global e local. Por beber em várias fontes. Macro e Micro agrupados pelo viés da palavra e acessados pelo estopim da imagem. Singular e Plural.“Aldeias e Pólis”. Tolstoi nos diz que só seremos universais se conhecermos e amarmos a nossa aldeia. A condição cosmopolita (vários lugares em um só lugar) está presente em todas as artérias da agenda, traduzindo olhares de vários espaços, juntando gente de vários lugares, onde cada cultura, cada expressão, cada aldeia é respeitada, mesmo sob a ótica de quem a agrupa. Ser cosmopolita é uma viagem! Fernando Pessoa, esse poeta de várias faces e muitos heterônimos que me desculpe, mas “viajar sem rumo é preciso!” (Helemento Qarbono)
Fechando “ser cosmopolita” com Fernando Pessoa e Helemento Qarbono tá ótimo! Isso sim, que é “ser” cosmopolita. Conhecer, respeitar e aceitar sob a ótica da complexidade. Administre o caos antes que o caos administre você! Define-se a síntese, estabelecendo então a sua ultima condição, expondo o seu “jeito cosmopolitano de ser”.
Caramba!! Quanta coisa dita e ainda tanto a se dizer! Pra quem pensava que Ela era só bonitinha se enganou! Como diria o profeta de rua Caetano Emanuel Telles Veloso, “de perto ninguém é normal”. Eu já digo é que rapadura é doce, mas não é mole! O Helemento Qarbono, outro profeta de rua, me disse que Ela (a agenda) é bonitinha, mas ordinária.
Agradeço a todos pela paciência em tentar destrinchar a cara e a alma dessa criatura, navegando juntos por águas nunca d´antes navegadas. Esta é um pouco da história da agenda, que às vezes se plasma com a história de seu criador.
O Helemento Qarbono é um pseudônimo, um profeta de rua imaginário que me encantou, me deixou boquiaberto com suas frases básicas, hiper-compactas, lacônicas, profundas e apaixonantes. Dele sim vocês podem dizer: - Você não existe! ... E não existe mesmo! Ele é um fragmento de sonho, que de tanto desejar falar, acabou se fazendo matéria. Ele sim, se plasma com a agenda e transita livremente pelas condições de atemporal, singular e cosmopolita. Ele é talvez a síntese auto-biográfica de todos os meus trabalhos, uma espécie de “TUDO–AO – MESMO - AGORA ”. Um tipo de raptor de imagens, que as devora e as transforma em registro gráfico-social-imagético.
Fico imensamente feliz pelo seu resgate, pelo seu surgimento junto a “Radio Ressurreição”, se unindo, se plasmando e formando um todo, que é a Agenda Poética Marginal.
A agenda é um trabalho desafiador, que cobra de mim uma atenção integral, uma dedicação intensa, desde a escolha e construção da capa até a concepção do conteúdo interno, como a associação de uma ilustração com a frase.
Espero que gostem desta nova versão, pois fechei os olhos e mergulhei de cabeça na esperança de tentar reproduzir na íntegra o que eu esperava que ela fosse. E ela foi! E ela é!!
Lembrando que este texto não é linear. Aqui nada é cronológico. Procure evitar ligações com espaço-tempo-narrador. O que se lê aqui são insight´s, fragmentos de tempo e ações isoladas no espaço que deram corpo a uma colcha de tecido multicolorida que se chama VIDA, ou simplesmente, se assim preferirem, AGENDA POÉTICA MARGINAL.
Helemento Qarbono
Algumas palavras sobre outras palavras
(Surge a Rádio Ressurreição)
Eu gosto de palavras e ainda mais do que se pode fazer com elas. Alterá-las, recriá-las, implodí-las, fazê-las aos pedaços revelando assim sua amplidão. Tocá-las, rasgá-las ao meio como uma espécie de alquimia oral em constante movimento, fazendo da fala um organismo vivo e mutante. Eu respeito e admiro a palavra e a força que ela tem em impor o seu significado, em provocar sensações mil e também pela condição de ser breve, compacta e lacônica (É isso e pronto!!).
Palavras são sinestésicas. Causam emoção. Respondem ao toque. A palavra sono dá sono. A palavra saudade faz chorar. A palavra amigo faz sorrir. Palavras como viajar e navegar libertam e a palavra obedecer aprisiona.
Tenho predileção por palavras de sílabas fortes e conceitos orgânicos, pela beleza da silábica e pela perfeição da ressonância, como Catraca, Jenipapo, Araçá, Cajuí e Tataíra. Também tenho a estranha mania de criar nomes, como por exemplo: Infectografia, Objeto Andrômeda, Agenda Poética Marginal, Helemento Qarbono, Mortalha Metálica, Aldeia Primal, Antro da Imagem,Ponto Matrix e Centelha de Fogo.
Acho belas palavras estranhas e exóticas, aliás, tudo que se apresenta estranho exala exoticidade e tem uma beleza particular e “Intro”, como Germinal, Maíra, Aeroplano, Katsuhiro Otomo, Perséfone, Pangéia, Cosmogonia e Akira. Também acho bacana palavras com consoantes mudas como Assepsia, Cápsula, Obsoleto e Autópsia.
Frutas como Ingá, peixes como Carí e aves como Pipira são palavras que fazem parte do meu universo primal e até hoje eu as guardo na retina e no coração. A palavra define, identifica e separa, ela agrupa, diagnostica, conduz e é conduzida; estabelece e norteia faz absorver e é absorvida. A palavra se enclausura em si mesmo e ao mesmo tempo se expande aos outros, apresentando novos mundos e macro universos; se plasma com o seu criador, mas ao mesmo tempo independe dele, agitando sua bandeira de independência e de total autonomia. Ela sim, é o fio condutor da história.
... E pensar que tudo isso que foi dito é somente para falar da Rádio Ressurreição, ou melhor, pra abrir campo pra tentar esmiuçar essa palavra que soa como um enigma, um nome composto por duas palavras que, isoladas tem suas múltiplas significações e agrupadas então, adquirem trocentas leituras.
Pra explicar o porquê do nome e como se deu sua aparição, tenho que rememorar o episódio de cinco anos atrás.
Tudo começou em uma das muitas viagens em que eu ia expor meus trabalhos gráficos, acompanhado por alunos do curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Saímos de Imperatriz com destino a uma outra cidade do Nordeste que não lembro o nome (Natal, Fortaleza, Recife ou João Pessoa??). O ônibus rasgava o sertão revelando na janela paisagens únicas, onde se via pequenas vilas, árvores dispersas e rochas. A vegetação se apresentava rasteira na maioria dos espaços. Era 06:40 da manhã, mas como na maioria das cidades nordestinas, o sol já se fazia presente. Foi nesse momento que o ônibus passou por um pequeno povoado incrustado na base de uma montanha. Foi então que vi a imagem que me acompanharia até hoje, onipresente, constante, convidativa e ao mesmo tempo sem opção de acesso. Uma pergunta que não quer calar. Caramba! Quanto mistério! Mas não, eu não vi um disco voador (Apesar de adorar ficção!). O que vi, era uma placa enferrujada, pregada a uma peça de madeira quase caída, deixando a placa em posição diagonal. Percebia-se a madeira bastante envelhecida pela tonalidade de cinza-claro. Apesar de bastante oxidada, carcomida pela ferrugem, dava pra se ler o que havia escrito na placa, e lá estava ela, a palavra “Rádio Ressurreição”. Então veio o choque, o deslumbre! Em fração de segundos comecei a “escanear” todo o resto da imagem, e faço aqui uma descrição fiel: Atrás da placa semi-caída havia uma construção em ruínas. O telhado já não existia, apresentava apenas falhas peças de madeira (tesouras e caibros) que davam sustentação à estrutura do que era para ser um telhado. As paredes carcomidas pela erosão estavam cobertas de limo, com grandes rachaduras que deixavam à mostra tijolos do tipo “Adobe”. Fechaduras, trincas e ferrolhos, peças de metal oxidadas pelo tempo e pela intempérie. O local da cena ficava em uma parte isolada do pequeno povoado, fazendo disso maior a sua condição de abandono e estagnação. Em meio a tudo isso, lá estava ela, resistindo silenciosamente a tudo e emitindo, irradiando a sua vontade: Radio Ressurreição! Estranho pra vocês e mais estranho ainda para mim.
Como o ônibus estava numa subida, desenvolvia uma velocidade baixa, o que me deu tempo para “fotografar” na retina esta imagem e fazer varredura do local. O Ônibus seguia o seu trajeto, deixando pra trás um episódio com característica surreal – Rádio Ressurreição...
A história começa agora! O que mais me chamou a atenção nessa cena foi a condição de associá-la a uma metáfora visual. Uma palavra que se rebela contra a matéria e se opõe poeticamente ao contexto material ao qual está inserida, lembrando, nos anos 60 uma flor depositada no cano de um fuzil.
Sua desobediência pacifista dava voz à mensagem, e era como se a palavra falasse ao seu agressor: “Devore-me, mas irei renascer, mate-me, mas eu irei ressurgir.” Era um contraste gritante. Quando inicei este texto dizendo que respeito palavras e sua capacidade de se impor e de provocar sensações mil, eu estava me reportando a esse momento.
A placa com a palavra pedia vida, e a construção, no seu isolamento, me mostrava torpor, letragia e estagnação. Impotência. Eu absorvi aquela imagem e segui mastigando, ruminando aquela metáfora visual. O õnibus se preciptava no mundo. O dia-a-dia e a ordem natural das coisas se encarregariam de apagar aquela visão, mas coube às janelas empoeiradas capturar e arquivar aquela imagem. Depois de muito tempo, a vontade era de se construir um texto para ficar somente comigo, relatando esse acontecimento, mas isso seria a mais completa forma de ciúme. Foi aí que senti a vontade de juntar algumas coisas já ditas pelo Helemento Qarbono e partir para uma nova edição da agenda poética marginal.
É exatamente nesse momento que me apaixono pela palavra Rádio Ressurreição e começo a fazer analogias em relação ao meu trabalho. Como eu estava vivendo uma espécie de “ócio criativo” a palavra foi o estopim que fez com que eu começasse a esboçar, desenhar e projetar visualmente a nova agenda. Acho que foi tudo muito rápido (a decisão). Foi mais ou menos assim: “Rádio Ressurreição” Rádio - recebe e emite ondas. Decodifica Transforma em linguagem. Emite informações, recebe sinais.
Ressurreição – ressurgir, renascer, acordar, renovar, recomeçar...
Era isso !! Então eu falei: Caramba! É isso! É isso que eu quero agora!!
AGENDA POÉTICA MARGINAL – RÁDIO RESSURREIÇÃO!
Um lugar que, por não lembrar onde fica, torna-se imaginário, mas que eu registrei na retina e edifiquei com as palavras, dando-lhe uma condição concreta e substancial.
...Mas a pergunta não quer calar! O que seria então a Rádio Ressurreição? Uma rádio comunitária desativada há muito, muito tempo? Um sistema primitivo de comunicação do povoado? Uma estrutura com finalidade religiosa?
Eu só sei que ela (a palavra) estava lá! Impondo a sua vontade, seu desejo fértil de brotar em meio a um ambiente ermo e inóspido. Entre todos os elementos que formavam aquela cena (ruínas - desolação) a palavra Rádio Ressurreição era a única que não aceitava a sua condição, a partir do momento que transforma um símbolo visual (palavra) em desejo (ressurgir, irradiar, propagar, renascer).
Talvez tenha sido por isso que desencadeei uma verdadeira fascinação pela palavra, que acabou se entranhando na minha pele, na minha respiração e na minha fala. Aquela sensação visual explodiu na minha cabeça naquele dia com a mesma intensidade de uma bomba de efeito retardado, onde somente agora revela os seus cacos, seus estilhaços em forma de fala e imagem, se materializando em uma agenda. Somente depois de cinco anos começo a fazer ligações, analogias, um pequeno olhar que abriu um canal para uma ideia complexa.
E tudo por causa de uma palavra. Silenciosa e irônica ao extremo. Pessoas silenciosas são interessantes! Lá estava ela, uma flor no deserto, uma rosa de cor vermelho-escarlate nascendo, brotando nas reentrâncias de uma rocha, pedindo vida, resistindo à verdade alheia, duvidando do que é imposto.
Então eu fui convidado a pensar: Desconfie dos heróis, dos ícones. Eu só acredito no conhecimento quando se pode rasgá-lo ao meio, duvidando de sua totalidade, com a possibilidade de alterar sua forma concreta e ideológica. Aquela placa poderia ser você?? O que simbolicamente te oprime? Viva todo o conhecimento gerado do erro, pois se não sabem, viver é errar! Eu prefiro acreditar em um erro do que em uma pessoa!
E foi assim que a palavra se fez verbo, o verbo se fez vontade e a vontade se consubstanciou em coragem pra fazer brotar este trabalho. A palavra Rádio Ressurreição entra para a história da minha vida, me infeccionando, se alastrando, me fazendo crer que renovar sempre é provável e que renascer sempre é possível. Cuidado com os heróis, com os que nunca erram, com os quadros renascentistas, limpíssimos e belos. Cuidado com a perfeição que aliena, com a beleza que sempre se apresenta antes do conteúdo. A Agenda Poética Marginal é bela, mas é fruto de atropelos mil, como uma flor nascida da lama ou do lôdo. Se quiserem, podem me chamar de senhor-desatre, eu entederia e aceitaria.
No retorno daquela viagem voltei com a esperança de reencontrar aquele lugar enigmático, com a mesma vontade de quem é separado de uma forte paixão antiga em um dia de feriado num pequeno vilarejo e que depois de muito, muito tempo, anseia reencontrá-la.
Inquieto por não reencontrar o local, esbocei um sorriso tímido e silencioso e aceitei a condição que foi a de ter estado ali, tão pertinho daquela palavra que, de desejo, de situação abstrata se transforma em um objeto concreto, enchendo o meu coração de alegria e os meus olhos de espanto. De vez em quando e de quando em vez é bom se espantar! ... Já pensou se tudo fosse previsível e perdêssemos a capacidade de nos espantar??
Eu vou ficando por aqui. Até a próxima Agenda Poética Marginal e tomara que na próxima eu não tenha que dar tantas explicações!!!
Helemento Qarbono
Peixes, lamparinas e Jean –Jacques Rousseau
(Análise da capa sob a ótica de um Helemento)
Fiquei extremamente feliz com a construção visual da Agenda Poética Marginal – Rádio Ressurreição, e mais feliz ainda pela concepção da capa, onde atribuí uma linguagem metafórica ao desenho.
Na imagem da capa, se vê uma pessoa iluminado um espaço, empunhando uma lamparina. Logo abaixo do desenho está escrito o nome da agenda em três situações diferentes, onde a última palavra que compõe a nomeclatura está escrita de cabeça para baixo. Justamente para dar o seu recado e marcar de cara a sua desobediência às normas e expor o seu temperamento de “persona non grata” mostrando o seu D.N.A. atípico.
Lançando um olhar mais denso, a imagem da capa traz citações a três pessoas que formularam pensamentos aos quais usei como referência para nortear outras leituras. Esta é a minha maneira de ver, a minha analogia, o meu olhar lançado de forma ampla e detalhista.
Os pensadores a quem me refiro são Paulo Freire, Tolstoi e Jean-Jacques Rousseau. Paulo Freire é citado pelo pensamento que nos diz que a leitura de mundo precede a leitura da palavra. Fazendo alusão ao conhecimento autodidata. Transportando essa condição para a capa, associamos o conhecimento com a luz da lamparina, empunhada pelas duas mãos, apresentando assim uma iluminação SUA, um conhecimento SEU. A percepção do mundo e das coisas sob o viés autodidata. As duas mãos segurando a lamparina fazem uma clara alusão à autonomia e ao conhecimento gerado pela não-dependência (educação formal).
Jean-Jacques Rousseau também é notado nessa leitura, quando nos diz que o homem nasce puro e a sociedade o corrompe. Essa característica é notada pelo uso da lamparina que gera luz, que irradia luz, uma maneira primitiva que se opõe ao urbano (luz elétrica), mas que também cumpre a sua funcionalidade e praticidade. Segundo minha analogia, a luz elétrica (conhecimento gerado pela ciência) pode ser comparada como um símbolo de aculturação, ao passo que a luz da lamparina pode ser vista como um símbolo de resistência cultural.
Ainda relacionado à Rousseau, a imagem da capa nos apresenta uma pessoa sem vestimenta, nos remetendo assim à ideia de não-domesticação e ausência de elementos morais que a sociedade impõe e estabelece, como o conceito de pudor.
Sobre ver Tolstoi na capa, refiro-me à sua fala que nos diz que o nosso universo é a nossa aldeia. Essa condição também é vista na capa, personificada pela lamparina, trazendo assim uma referência visual em relação às lembranças da minha infância, da minha pequena aldeia a quem chamo de “Aldeia Primal”, um universo imagético guardado pelas janelas empoeiradas, repleto de imagens como peixes, lamparinas e igrejas. O coração que adorna a lamparina é uma clara referência ao apêgo afetivo às nossas raízes.
Acho que agora se completa a minha leitura, fazendo com que eu passe o comando dessa nau-à-deriva para o comando de vocês. A alquimia do ver, do sentir e do perceber agora está nas suas mãos, e tem rosto, nome e endereço.
Obrigado pela companhia!
A gente se vê por aí!
Helemento Qarbono