segunda-feira, 1 de abril de 2013

Picotes da madrugada



(Para ler escutando Ella Fitzgerald)



Os dois conversavam de madrugada sob a mesma cama dividindo o lençol e buscavam entrar em consenso sobre a efemeridade dos relacionamentos.Ela lembrou vagamente do livro da Hilda Hilst que havia lido dias atrás, ele lembrou do que leu no jornal e disse:
                - Você é de que?
- Eu sou pêssego
- Não! Digo, qual seu signo, virgem? Peixes? Câncer?
- Pois é, eu sou pêssego, acabei de inventar.
- Mas por que pêssego?
- Dentre as milhares de frutas que conhecemos, desgustamos e desconhecemos o pêssego existe  unicamente para o deleite do paladar e da pronúncia. Existem sabores que se encontram e até se confudem. Se colocar uma venda nos olhos e oferecer-te vários alimentos, entre eles , o pêssego  se destacará. Não é qualquer fruta, não se come no dia a dia...
- Eu nunca comi pêssego.
- Viu?!
- Hã? 
- Porque você nunca comeu pêssego?
- Porque nunca me interessei em provar, nunca nem vi no supermercado.
- É bem por aí a questão, os pêssegos não tem e nunca teve a pretensão de ser uma fruta conhecida como a maça, a laranja ou a banana. Ela é fruta dos que sabem apreciar um paladar diferenciado, daqueles que constroem uma trama para conhecer coisas diferentes. Não que você não esteja apto a entrar nesse mundo, mas é ainda desconhecido. Talvez como uma virgem deseja provar da primeira vez com todo o entusiasmo e a mágica de esperar flores e vinho do outro. Se ela encontrar um pêssego não vai se decepcionar, mas se escolher uma maçã podre irá amargar em sua boca, embora a podridão também tenha seus encantos. E, talvez ela nem esteja afim de pêssego, talvez queira mesmo a maça ou a banana. As pessoas fogem do pêssego por medo do preço, por isso escolhem a maça e a banana por saber que o valor é mais acessível.
- Agora você é uma mercadoria?
-Você entende de metáforas? É que as vezes pareço estar em outra dimensão, com outro dialeto e vai que...
- Lembro de ter estudado isso anos atrás, mas tá dando pra acompanhar mais ou menos,  só não entendi... é pra comprar ou não  o pêssego?
- Hummm, então... o preço do pêssego é uma assimetria, é algo que embora seja caro seu valor é inquestionável. Por isso sou o pêssego, não atendo ao chamado do comprador que não está reparando no valor nutritivo de sua “compra”, que se vê ansioso pela degustação, mas que procura nessa fruta a diferença, espera a oportunidade e sabe que não encontrará no mercado tradicional.
- Então você está dizendo que é uma fruta cara e só te compra quem tem dinheiro?
- Não literalmente, jumas!
- Jumas?
- Jume... esquece. Toma seu vinho e vá para casa que já esta amanhecendo.

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